Para marcar a data, a Secretaria de Comunicação Social (Secom) do Senado e o Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Senado lançam a campanha Racismo em Pauta. A Agência Senado, a TV Senado e a Rádio Senado trarão reportagens especiais sobre o racismo estrutural que marca a sociedade brasileira. A série de conteúdos especiais seguirá até dezembro, num momento em que o Brasil e o mundo buscam discutir o assunto com mais profundidade, após a comoção internacional causada pelo assassinato de George Floyd, homem negro morto pela polícia nos Estados Unidos, em maio.

A Agência Senado inaugura a série de reportagens fazendo um balanço dos dez anos de implantação do Estatuto da Igualdade Racial (EIR — Lei 12.288, de 2010) no Brasil. Entrevistamos senadores e o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, o advogado e professor José Vicente, uma das referências nacionais no debate contra o racismo estrutural.

Convidamos também os leitores a lerem o estatuto, que traz uma série de diretrizes buscando ampliar direitos em diversas áreas para os segmentos historicamente discriminados na sociedade brasileira, como negros e índios. São artigos que tratam de acesso ao mercado de trabalho e à terra, à liberdade de crença e a políticas de saúde, educação, cultura, esporte, entre outras.

— O estatuto acabou não tendo o texto ideal, mas foi o possível para a época. Acredito que, nestes dez anos, tivemos alguns avanços, e o movimento negro continua lutando pela implantação de novas políticas, ampliando sua efetividade — diz o senador Paulo Paim (PT-RS), que apresentou a proposta pela primeira vez quando ainda era deputado federal, em 1999.

Também foram entrevistados os senadores Eliziane Gama (Cidadania-MA), Fabiano Contarato (Rede-ES), Romário (Podemos-RJ) e Telmário Mota (Pros-RR). Confira abaixo.

Entrevista com o senador Paulo Paim, que propôs o estatuto

Agência Senado — Senador, quem acompanhou a tramitação do Estatuto da Igualdade Racial sabe como foi difícil aprová-lo. Foram dez anos de árduas negociações, com idas e vindas, e concessões foram feitas. Fale um pouco sobre esse processo. Paulo Paim — Sabe quando eu tive a ideia de apresentar o estatuto? Em 1989, quando estive na África do Sul representando o Congresso brasileiro, numa comitiva que pedia a libertação de Nelson Mandela. Cheguei a me encontrar com Mandela na cadeia, numa visita com sua então esposa, Winnie Mandela. Quando voltei ao Brasil, após ser reeleito, resolvi fazer reuniões com as principais lideranças do movimento negro, com quem sempre tive e continuo tendo interlocução. O objetivo era construir uma política nacional de combate ao racismo. Após anos de debates, ainda como deputado, apresentei o primeiro projeto. Como não teve condições políticas na correlação de forças para avançar, resolvi reapresentá-lo em 2003, já então como senador. Como todos sabem, muitas resistências e dificuldades continuaram permeando o caminho, e levou mais  dez anos para aprová-lo. O que eu tive de negociar politicamente não foi fácil, inclusive tendo que ceder em alguns pontos. Me lembro que o presidente Lula, no dia da sanção, disse: “O estatuto não tem o texto ideal, mas vamos aprová-lo, porque é um avanço”. Eu concordo com esta avaliação, o EIR não foi o texto ideal, mas foi o que conseguimos naquela conjuntura. AS — Quais foram os principais pontos em que o senhor teve de ceder? PP – Tivemos que retirar, por pressão dentro do Congresso, a política de cotas e o fundo de combate ao racismo. No caso das cotas nas universidades, a vitória veio em 2012. Participei da sessão no STF que a aprovou por unanimidade, que garantiu a participação de 54% de negros e negras nas universidades públicas. E é bom lembrar que quando o STF também reconheceu as cotas para negros no serviço público (uma cota de 20%), em 2017, a decisão também teve como base o Estatuto da Igualdade Racial. No que tange à criação do Fundo de Promoção da Igualdade Racial, a luta continua. Na CCJ, o senador Weverton (PDT-MA) já apresentou seu relatório pela aprovação, que aguarda votação desde o ano passado (PEC 33/2016). AS — Em que outros pontos a sociedade brasileira deve avançar, visando dar mais efetividade ao estatuto? PP — Fui vice-presidente da CPI do Assassinato de Jovens, e dela nasceu o PLS 239/2016, que acaba com os chamados “autos de resistência”. Esse projeto torna obrigatórios a autópsia e exame interno em casos de morte violenta, nas ações com o envolvimento de agentes do Estado. Aguarda votação no Plenário desde 2017. Vivemos num país em que a violência policial contra jovens negros, infelizmente, é institucionalizada. O mundo todo hoje diz que vidas negras importam, vamos ver se conseguimos aprovar este projeto. Também apresentei neste ano o PL 3.434/2020, que reserva vagas para negros, indígenas e pessoas com deficiência nos cursos de pós-graduação.

José Vicente: “A elite brasileira não tem como não ser racista”

Há menos de um mês, a Faculdade Zumbi dos Palmares (Fazp), junto com a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial e diversas outras entidades, lançou a campanha Vidas Negras Importam: Movimento Ar. Um dos articuladores é o educador e advogado José Vicente, reitor da faculdade. Já aderiram ao Movimento Ar o governo do Estado de São Paulo, a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) e grandes empresas como Intel, Magazine Luiza, Novartis, Suzano, Universidade Paulista (Unip) e outras. Muitas outras entidades também apoiam o movimento, como a TV Cultura, o Todos pela Educação, a Afrobras, a Câmara Brasileira do Livro (CBL), a Comissão Arns, os clubes de futebol Corinthians e Ponte Preta e as escolas de samba Vai-Vai e Mangueira. O movimento busca atuar em ações estratégicas, através de políticas públicas e parcerias, para que os negros tenham mais acesso à renda e à educação. Nesta entrevista à Agência Senado, José Vicente fala sobre o racismo estrutural, o Estatuto da Igualdade Racial e outros temas. Também comentarista da TV Cultura e colunista da revista IstoÉ, Vicente integra hoje a Comissão Nacional de Acompanhamento e Controle Social do Prouni (Conap), o Conselho Consultivo do Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da Universidade de São Paulo (USP), o Conselho Superior de Estudos Avançados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o Conselho Consultivo do Centro de Integração Empresa Escola (Ciee) e outras entidades. Agência Senado — A elite brasileira é racista? José Vicente — A elite brasileira, por natureza e por necessidade, não tem como não ser racista. O racismo estrutural no país é um dos meios pelo qual ela se mantém e continua constituída como elite. Na medida em que tivesse interesse em conceder um tratamento igualitário a todos, teria que abrir mão de diversos privilégios sociais. Teria que compartilhar esses privilégios especialmente com a população negra, historicamente excluída dos ambientes em que os segmentos da chamada elite se constitui, reproduz estes mecanismos de perpetuação e se protege. Os espaços de formação, aprimoramento, socialização e exercício do poder na sociedade brasileira ainda são profundamente marcados pelos séculos de escravidão e o racismo estrutural que se seguiu. Esses espaços continuam mantendo-se como um funil extremamente difícil de ser transposto pela imensa maioria da população negra neste país. Em suma, precisamos admitir que o racismo no Brasil tornou-se uma prática naturalizada, é parte da paisagem. É um mecanismo permanente e eficiente em seus propósitos. As práticas racistas estruturais foram de tal forma historicamente naturalizadas pelo que chamamos de elite brasileira que esses mecanismos tornaram-se de fato indiferentes para a maior parte dela. AS — Você faz parte da articulação do Vidas Negras Importam: Movimento Ar. Fale um pouco sobre a iniciativa. JV — Eu vejo o Vidas Negras Importam como um libelo de tudo que passamos nos últimos dez anos, por exemplo, do Estatuto da Igualdade Racial às comoções causadas pelo assassinato de George Floyd. Pense bem: enquanto se discutia o EIR no Congresso, o Brasil avançou da 12ª para a 5ª economia do mundo, sem vermos de fato mudanças significativas na condição social da maioria dos negros neste país. E hoje, em 2020, penso que a situação da maioria da negritude é ainda pior. Nos últimos anos, as práticas — podemos dizer veladas e escamoteadas — de racismo vêm se tornando cada vez mais ostensivas, explícitas em sua operação. No mesmo momento em que o racismo sofre condenações públicas internacionalmente, aqui as forças policiais continuam sentindo-se autorizadas a agredir e matar jovens negros impunemente. Aqui chega-se ao extremo de um policial pisar no pescoço de uma mãe, uma senhora negra de 52 anos de idade, à luz do dia, na frente de todos [a agressão foi filmada e exibida no programa de TV Fantástico no dia 12 de julho. O nome da vítima não foi divulgado]. Vejo o Vidas Negras Importam como um grito desesperado, para que as instituições e a sociedade percebam que o país está à beira do precipício. Um país que assiste normalmente ao genocídio de sua juventude negra está deturpado; os propósitos mais básicos de convivência social já não funcionam. Isso precisa mudar. AS — Você citou o caso de George Floyd e a grande repressão policial contra os negros no Brasil. Como você compara as reações a essa violência policial, nos Estados Unidos e no Brasil? JV — O caso George Floyd explicitou os dois pesos e as duas medidas com as quais as duas sociedades tratam temas idênticos. Nos EUA, a despeito até mesmo da pandemia, negros e brancos foram a grandes manifestações, exigindo que a polícia altere sua forma de agir. As mobilizações nos meios políticos, artísticos e esportivos também foi expressiva. Parece que a sociedade norte-americana tem se dado conta que esta situação chegou a um limite. Infelizmente, não há nada parecido aqui no Brasil, nem no passado nem no presente. Mesmo diante de inúmeros casos que acontecem por aqui, que são como os que George Floyd sofreu. Aqui as polícias civis, militares, Federal, o Exército e a segurança privada praticam cotidianamente as mais degradantes cenas contra homens e mulheres negros. Um caso emblemático foi esse exibido no Fantástico, em que um policial pisoteia o pescoço de uma idosa negra na frente de todos os transeuntes. As forças policiais não respeitam e jamais respeitaram os negros no Brasil. Hoje o mundo repudia essa forma de racismo, enquanto o Brasil permanece calado. AS  — Na condição de reitor da Fazp, como você avalia a reação da juventude negra hoje ao racismo? JV — O jovem negro é quem mais sofre com a repressão policial, e isso cada vez revolta mais. Percebo que essa tensão, essa vigilância constante do ir e vir da juventude negra, a cada dia que passa é percebido como menos aceitável. Justiça seja feita, esse é o segmento social que inclusive mais tem se mobilizado contra o racismo estrutural, a meu ver. Na periferia, esses jovens, mesmo desarmados, muitas vezes têm reagido contra a repressão indiscriminada. Estão se mobilizando para cobrar mudanças, participado de reivindicações e debates, pois são o alvo preferencial dos racistas. AS — Após 10 anos em vigor, como o senhor avalia o Estatuto da Igualdade Racial? JV — O Estatuto foi uma conquista relevante, mas por tudo que discutimos nesta entrevista, ainda está longe de atingir seus anseios. Foi muito bem-intencionado, cobre as reivindicações da comunidade negra, mas sofre de uma grande dificuldade de implementação. Criou-se a força política para sua aprovação, mas ainda não há essa força para implementá-lo. Faltam metas, cronogramas e orçamento. Cabe ao Parlamento reparar esses pontos.

Senadores repercutem os dez anos do estatuto

Eliziane Gama (Cidadania-MA) — “Foi um marco importante, proporcionou conquistas relevantes, mas ainda precisa ser mais eficaz. Neste país, os negros ainda são pisoteados no meio da rua pelo poder público. E 75% dos mortos pela polícia são negros. Enquanto a taxa geral de homicídios no Brasil é de 28 pessoas por 100 mil habitantes, entre homens negros de 19 a 24 anos de idade a taxa sobe para mais de 200. No Brasil, a cor da pele interfere no julgamento e na condenação. Além das polícias constantemente espancarem ou humilharem publicamente pessoas negras. Muita coisa ainda precisa evoluir em nossa sociedade.”
Fabiano Contarato (Rede-ES) — “Avalio que a maior conquista do EIR foi o STF, tendo como base também este documento legal, ter reconhecido as políticas de cotas no serviço público e no ensino superior. Ainda não foi possível implementá-lo em 100% de suas previsões, mas alerto para o fato de que o quadro hoje é mais grave. O atual governo afastou o Estado brasileiro das políticas reparatórias e inclusivas. Mas quero aproveitar este espaço também para reconhecer o esforço histórico do senador Paulo Paim, e que a sociedade brasileira não permita perder o que já conseguiu, ainda que longe do ideal.”
Romário (Podemos-RJ) — “O EIR deu prosseguimento a outras conquistas na legislação, como a Lei Caó (Lei 7.716, de 1989), que definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Também penso que ele possibilitou outros avanços, como as cotas no serviço público e universidades. Após dez anos, que ele nos inspire a aprovar novas leis, combatendo todas as formas de desigualdade social em nosso país.”
Telmário Mota (Pros-RR) — Nesta segunda-feira, o Estatuto da Igualdade completa 10 anos, mas infelizmente o racismo continua a segregar e a excluir. Eu sempre lutei contra a desigualdade racial. Por isso, apresentei o projeto que institui a Política Nacional de Apoio ao Afroempreendedorismo (PL 2.538/2020). O objetivo da proposta é promover e fortalecer iniciativas empreendedoras lideradas por pessoas negras.

Fonte | Agência Senado

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