Enquanto aguarda a chegada do quarto filho, Angelita Patrícia da Silva tem que se segurar para ficar em casa e não ir trabalhar na terra onde cultiva de tudo um pouco: milho, abóbora, banana, abacaxi, a cana-de-açúcar matéria prima da rapadura que faz, a mandioca que dá origem à farinha. A lista é longa.

Conhecida pelo seu segundo nome, Patrícia é como uma empreendedora do campo. Tem um sorriso largo exposto com frequência, mas ao falar sobre o que significa a terra na sua vida e trajetória, lágrimas fáceis escorrem pelo rosto.

“Sempre gostei de plantar, ver as coisas crescer”, tenta resumir.

De 29 anos, a agricultora chegou em Mato Grosso com 15 anos, junto dos pais e dos irmãos mais novos.

Foi ela quem, mesmo adolescente, deu o pontapé final para seu pai tomar a decisão de sair de Rondônia e ir para o novo estado, onde um tio já residia.

A família se estabeleceu no assentamento Campa Mansa, área rural de Colniza, município localizado a mais de mil quilômetros de Cuiabá e onde hoje Patrícia descobre e aprofunda, diariamente, novos conhecimentos sobre o que planta e produz.

“O alimento é a coisa mais importante do mundo. Nesse momento agora, por exemplo, é crucial. É vida, é saúde”, afirma ao referir-se à pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19) que afetou o transporte de alimentos para os municípios do interior da Amazônia.

Ao ver os cocos da palmeira babaçu, abundantes na região e desconhecidos para ela até então, ficou curiosa. “Deus não faz nada sem utilidade”, comenta.

Pesquisou e encontrou em um livro da biblioteca do Comissão Pastoral da Terra a informação que precisava para, mesmo sem experiência com o recurso, começar a quebrar o coco.

“Vi lá que era anti-inflamatório, serve pra anemia e várias outras coisas. Comecei a mexer do meu jeito, nunca tinha visto ninguém mexendo e ninguém aqui sabia. Fui adaptando, fazendo farelo e óleo. Aí a Nazaré interessou também”, conta.

Além do óleo, usado na alimentação e como cosmético, a farinha de babaçu produzida a partir do mesocarpo da amêndoa misturada com o sal virou alimento para o gado.

Foi uma de suas muitas ideias, geralmente recebidas com desconfiança. “Pessoal tira sarro”, diz rindo. Mas não a desmotiva.

Nazaré de Oliveira é uma nordestina de 55 anos, mas que morou boa parte da vida também em Rondônia. Sua trajetória é pautada pela participação em organizações no campo: associações, grupos, Movimento Sem Terra (MST).

Quando chegou no assentamento, em 2008, não foi diferente: quis se reunir com as mulheres do local.

ASSOCIAÇÃO PELA LIBERDADE

“As mulheres aqui sabiam fazer todo tipo de artesanato, mas não tinham renda. Então vimos a necessidade de formar um grupo. Fizemos cursos diferentes como corte e costura e aproveitamento de cacau”, conta.

Primeiro, buscaram se inserir na associação mista que já existia. A coordenação formada por homens, entretanto, não aceitou o grupo. As mulheres decidiram formar a própria.

A negativa inicial dos homens acabou sendo benéfica a elas, explica Nazaré. “A associação dos homens não dá essa liberdade às mulheres pra buscar formação, se informar e fazer cursos”, conta.

Daí o nome da nova formação: Associação Mulheres Rurais Liberdade, constituída em 2014, mas formalizada em 2018. “Depois de muita luta”, acrescenta a agricultura.

O grupo é apoiado pelo Instituto Centro de Vida (ICV) através do projeto Redes Socioprodutivas, financiado pelo Fundo Amazônia/BNDES que apoia empreendimentos comunitários nas cadeias produtivas de hortifrutigranjeiros, pecuária leiteira, café, castanha-do-Brasil, cacau e babaçu com métodos de produção sustentáveis e economicamente viáveis na região norte e noroeste do estado.

Quando ouviu falar da associação de mulheres, Patrícia quis “dar seus pitacos”.

“Ela [Nazaré] havia começado com o grupo já fazia mais ou menos um ano. Eu não sou dada a bordado, pintura, artesanato. Por isso também falei pra elas da importância da terra porque ninguém vai deixar de comprar alimento pra comprar artesanato”, conta a agricultora.

Depois do babaçu, Patrícia quis produzir colorau, tempero feito com urucum, óleo, sal e fubá. Ao ouvir falar da mistura como no nordeste da farinha de mandioca com coco, resolveu testar também. Nesse ano, a principal produção foi de doces: melado e rapadura.

A inspiração de Patrícia em experimentar alternativas se alinha sinergicamente com a capacidade de mobilização de Nazaré.

Iranilda, filha de Nazaré, é uma das integrantes da associação e testemunha da luta da mãe por unir as mulheres. “A mãe sempre gostou de tá no meio das pessoas, participar das reuniões. Não foi muito fácil convencer as mulheres, mas ela não parou de correr atrás, incentivando sempre”, diz.

Depois de andar por diferentes partes de Rondônia, em comunidades e em acampamentos, Nazaré encontrou seu lugar. “Agora sem previsão de sair daqui pra lugar nenhum não, estamos trabalhando muito e o grupo tá animado”, diz. Tem óleo e farinha de babaçu, açafrão, colorau, as roças de café e milho, lista a agricultora. “Tamo tirando a sobrevivência de cima da terra”, repete.

CONSTRUIR UMA NOVA REALIDADE

Para a técnica do ICV e assessora do grupo, Benedita Ferreira, o desejo e a persistência no trabalho coletivo da associação feminina possibilitam a construção de uma nova realidade na agricultura familiar da região.

“Elas não desanimam, estão sempre buscando parcerias fora e dentro do município. Isso com elas como protagonistas das ações coletivas também dentro do assentamento, o que é uma luta constante dessas mulheres, com faixas etárias diferenciadas, mas que se complementam”, relata.

Eventos são organizados pelo grupo de mulheres para angariar recursos para investimentos na associação, como a reforma do barracão do grupo. Em outubro, o grupo realizou uma feira na comunidade, que deve acontecer mais vezes.

Nazaré credita as conquistas da associação à busca constante por conhecimento das mulheres. Até três anos atrás, exemplifica, ela quase nada sabia sobre legislação.

“A gente nunca sabe tudo, estamos sempre aprendendo, todo dia. Quando a gente não sabe de algo, a gente busca aprender com quem sabe”, afirma. “Ser mulher não é só viver no pé do tanque né? É ir pra luta, buscar, é interagir com a sociedade. A gente vai vivendo e vai aprendendo, busca informação.”

Para Patrícia, ser mulher significa ter um contato mais íntimo com a natureza. “A gente tem mais sensibilidade para mudar as coisas, enxerga além do que tá acontecendo. Temos essa força. Somos mães, somos filhas. O que falta é sermos valorizadas: se fôssemos mais ouvidas, o mundo seria melhor.”

Com o apoio do ICV, a associação feminina que hoje conta com 14 mulheres foi formalizada, o que possibilitará maior abertura com o mercado diante da emissão de nota fiscal, entre outros benefícios.

“A nossa previsão é que a partir de janeiro a gente coloque em prática muitos de nossos projetos”, diz Nazaré. Como a farinheira em reforma, que se apresenta potencial para consolidar uma fonte de renda às mulheres do campo.

Diferentemente da mãe, Iranilda experimentou morar na cidade. Trabalhava como costureira e seu marido, como pedreiro. Mas a qualidade de vida deixava a desejar. “É diferente da cidade, poluída, aqui onde a gente olha, vê verde, na cidade só ver muro me faz mal”, diz.

Questionada sobre sua relação com o campo, Nazaré compartilhou um vídeo de um poema escrito e declamado por Patrícia, que além de agricultura, é poeta.

Mesmo com as dificuldades de gestão e pelos meios de produção artesanais por vezes limitantes, Patrícia insiste em buscar a diversidade na produção.

A ela causa indignação ver os produtores considerando apenas o viés econômico das atividades. O sentimento é o principal insumo de seus poemas.

“Não dá pra ficar pensando só em ser pecuarista, tem que superar essa ideia de monocultura”, diz. “É se envenenar pelo lucro, envenena a si próprio, é um ciclo de morte que precisamos romper.”

Sua convicção integra os valores que espera que seus filhos reproduzam no futuro.

“Não é acumular, é pensar o que a gente quer pros nossos filhos. Da simplicidade surgem grandes coisas: o alimento é algo simples, mas essencial. Eu quero que eles aprendam a valorizar o alimento, que preenche tanto o espírito quanto o corpo. Se o alimento é trabalhado com amor, transmite amor. Tem que abastecer todo o ser, não é só uma questão de renda”, diz.

“Eu espero que eles aprendam a valorizar o que eles são, são filhos de agricultores, pessoas que nasceram na igreja, que valorizem a terra e aprendam a ser caridosos. Aprenda a olhar os outros. De ter acolhimento, pois tem muita gente que precisa de acolhimento”, discorre.

Seu caderno de poemas já soma mais de sessenta peças. Herdou a vocação pelas palavras de seu avô que, apesar de não escrever em papel, gostava de cantar e “inventá-las”, como diz Patrícia.

Do mesmo jeito que, segundo ela, Deus a mostra como cultivar novas espécies de plantas à medida que coloca o exercício do cuidado em prática, as palavras vão surgindo, uma atrás da outra.

Fonte | Assessoria
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