Através da névoa de suposta má conduta, esperança, hype e política que envolve a hidroxicloroquina, o medicamento contra a malária apresentado como tratamento para a COVID-19, um quadro científico está finalmente emergindo.

Vista por presidentes como uma possível cura milagrosa e por outros como uma distração que pode causar a morte, a hidroxicloroquina foi poupada do que aparenta ser um golpe mortal na semana passada. No dia 04 de junho, após críticos contestarem os dados, a revista científica The Lanced retirou um artigo que sugeria que a droga aumentava a taxa de mortalidade nos pacientes de COVID-19, uma descoberta que interrompeu diversos ensaios clínicos. Mas três estudos, dois em pessoas expostas ao vírus e com risco de infecção e uma em pacientes muito doentes, não mostram benefícios com o medicamento. Se sobressaindo em relação a outros ensaios menores, que tiveram descobertas decepcionantes, os novos resultados significam que é hora de seguir em frente, segundo alguns cientistas, e encerrar a maioria dos ensaios ainda em andamento.

Parece que estamos ignorando sinal após sinal,” diz Eric Topol, diretor do Instituto de Ciência Translacional Scripps. A propaganda do medicamento feita pelo presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, teve como consequência uma “obsessão” científica pela hidroxicloroquina, mesmo com a pouca informação sobre sua eficiência, ele diz.  “Estaríamos melhor se mudássemos nossa atenção para medicamentos que podem realmente funcionar.” Peter Kremsner da Universidade de Tübingen concorda eu a hidroxicloroquina “certamente não é uma droga milagrosa.” Os novos resultados o deixaram “lutando” com a questão de deve prosseguir com dois ensaios sobre hidroxicloroquina, um em hospitais e o outro em pacientes com doenças mais leves em casa.

As drogas irmãs Hidroxicloroquina e cloroquina são usadas contra a malária e outras doenças há décadas. A primeira evidência de que essas drogas poderiam funcionar contra o SARS-CoV-2 veio de dados de tubo de ensaio. A partir de então, centenas de testes foram iniciados por todo o mundo. Cientistas estão testando as drogas em pequenas e altas doses; por conta própria ou combinadas com antibiótico azitromicina, o composto antiviral favipiravir ou outros medicamentos; e em pacientes com doença leve ou grave, profissionais de saúde, mulheres grávidas e pessoas vivendo com HIV.

No dia 05 de Junho, pesquisadores do Reino Unido anunciaram os resultados do maior teste até então, o Recovery, em um comunicado à imprensa. Em um grupo de 1542 pacientes hospitalizados tratados com hidroxicloroquina, 25,7% morreram após 28 dias, comparados com 23,5% em um grupo de 3132 pacientes que receberam apenas o tratamento comum. “Esses dados descartam de forma convincente qualquer benefício significativo na mortalidade”, escreveram os investigadores, que encerraram o estudo mais cedo e prometeram publicar os resultados completos o mais rápido possível.

Os resultados estão convencendo alguns médicos a parar de usar o medicamento para o COVID-19. “O julgamento do Recovery, além dos sinais de outros estudos que recebemos até agora, são suficiente para me convencer a não oferecer hidroxicloroquina a pacientes hospitalizados“, escreveu Nahid Bhadelia, médica do Boston Medical Center, em um email. Martin Landray, da Universidade de Oxford, um dos principais pesquisadores da Recovery, concorda: “Se você, sua esposa, sua mãe são internados no hospital e lhes oferecem hidroxicloroquina, não aceite“, diz ele.

Apesar disso, alguns cientistas afirmam querer ver dados completos antes de se decidirem. Cerca de um em cada quatro pacientes morreu nos dois braços do estudo, observa Kremsner – uma taxa muito alta, sugerindo que estavam gravemente doentes quando o tratamento começou. Nicholas White, da Universidade Mahidol, em Bangkok, que também estuda hidroxicloroquina, concorda que todos os dados precisam ser avaliados. “Mas, no geral, é muito improvável, na minha opinião aqui neste momento, que algo mude“, diz ele.

Outra esperança da hidroxicloroquina, de impedir que as pessoas expostas ao vírus fiquem doentes, também desapareceu na semana passada, quando David Boulware, da Universidade de Minnesota, Twin Cities, e seus colegas publicaram os resultados do maior estudo até o momento desta estratégia, chamado Profilaxia Pós-Exposição (PPE). Os pesquisadores enviaram hidroxicloroquina ou um placebo por correio para 821 pessoas que estavam em contato próximo com um paciente COVID-19 por mais de 10 minutos, sem proteção adequada. Eles relataram no The New England Journal of Medicine que 12% das pessoas que tomaram o medicamento desenvolveram sintomas de COVID-19, contra 14% em um grupo placebo, uma diferença que não foi estatisticamente significativa.

Um segundo estudo grande sobre PPE também foi vazio, disse seu líder à Science. Realizado em Barcelona, na Espanha, esse estudo randomizou mais de 2300 pessoas expostas ao vírus à hidroxicloroquina ou aos cuidados usuais. Não houve diferença significativa entre o número de pessoas em cada grupo que desenvolveu o COVID-19, diz Oriol Mitjà, do Hospital Universitário Alemão Trias i Pujol. Mitjà diz que enviou os resultados para publicação.

Os dados são importantes pois são resultados de grandes estudos randomizados. Até o momento, a maioria dos dados veio de pequenos ensaios ou séries de casos. Uma metanálise de 24 desses estudos publicados nos Annals of Internal Medicine concluiu que “as evidências que existem sobre os benefícios e malefícios do uso da hidroxicloroquina ou cloroquina no tratamento do COVID-19 são insuficientes e muitas vezes conflitantes”.

As novas descobertas geram dúvidas sobre a interrupção de outros ensaios. A maioria é muito menor que a Recovery e, portanto, menos poderosa; é improvável que seus resultados mudem muitas mentes. A continuação dos testes pode impedir pesquisadores de testarem medicamentos com maior chance de trabalhar, além de roubar dos pacientes a chance de experimentá-los. Landray diz que a Organização Mundial da Saúde (OMS) agora deve retirar a hidroxicloroquina do seu grande estudo de tratamento com COVID-19, chamado Solidarity. “Acho que a decisão é bastante óbvia”, diz ele. A OMS diz que está considerando o assunto.

Há, porém, uma exceção. Muitos pesquisadores concordam que um bom argumento pode ser feito para continuar testando se a hidroxicloroquina pode prevenir a infecção se administrada a pessoas apenas no caso de serem expostas ao vírus, por exemplo, no trabalho em um hospital — uma estratégia chamada Profilaxia Pré-Exposição (PPrE). “Você tem uma chance muito mais alta de prevenir algo com uma droga fraca do que de curar uma infecção totalmente estabelecida”, diz White, que executa um dos maiores testes de PPrE. Ele observa que a doxiciclina, um antibiótico, é utilizada ha muito tempo na profilaxia da malária. “Nunca trataríamos ninguém com isso, é muito fraco. Mas é uma profilática muito boa.”

Landray, no entanto, está incerto sobre a continuação dos testes de profilaxia: “Suspeito que seja uma dessas decisões em que não há certo ou errado“. É uma dúvida importante, diz Bhadelia, porque um medicamento eficaz para a PPrE pode ter um grande impacto na pandemia. A hidroxicloroquina, um medicamento barato e amplamente disponível, é um dos poucos compostos que poderiam atender à demanda.

Mas o jornal Lancet, apesar de sua retração, tornará mais difícil continuar os testes atuais, lamenta White. Publicado em 22 de maio, o estudo alegou, supostamente com base em dados de 96.000 pacientes em todo o mundo, que a hidroxicloroquina e a cloroquina, independente de estarem administradas isoladamente ou em combinação com outro medicamento, causaram um aumento acentuado nas mortes. Isso levou muitas agências reguladoras a pedir aos cientistas que interrompessem seus testes e se assegurassem de que não estavam prejudicando seus pacientes. Recovery e Solidarity foram temporariamente interrompidas, mas foram retomadas depois que um comitê de segurança analisou os dados.

Muitos outros testes ainda estão em pausa. Os reguladores do Reino Unido, por exemplo, pediram uma série de salvaguardas adicionais, diz Joseph Cheriyan, farmacologista clínico do Hospital Universitário de Cambridge e principal investigador de um estudo de PPrE em profissionais de saúde. Esse estudo já excluiu pacientes que tomam qualquer uma das várias dúzias de medicamentos, mas Cheriyan diz que os órgãos reguladores pediram mais mudanças, o que atrasará o estudo em algumas semanas. E, apesar da retração do Lancet, as manchetes alarmantes sobre os riscos da droga tornaram muito mais difícil convencer as pessoas a participar de um julgamento, diz White. “Eu acho que esses testes foram muito danificados e alguns deles podem nunca ser reiniciados.”

O problema para os cientistas é que existe muita pressa em encontrar tratamentos para o vírus que se espalha rapidamente, Mitjà diz: “A pressão é imensa”. No entanto, isso não deve impedir os pesquisadores de analisarem corretamente os dados e tomarem decisões pensadas com cuidado, diz White. “Nem sempre temos que agir hoje“, diz ele. “Não entrem em pânico.”

Apesar de ter sido anunciada como uma droga muito potente in vitro no tratamento do novo coronavírus, infelizmente, os estudos clínicos não conseguiram identificar benefícios no desfecho dos casos, nem graves, nem moderados, nem leves, nem mesmo em prevenção após exposição, em relação ao tratamento sem a droga. Resta a dúvida para uso profilático para equipes de saúde, onde poderia haver algum benefício, ainda não comprovado. Essa é a verdade científica do momento.” resume o Dr. Gustavo Peixoto, médico capixaba e professor universitário. Fonte | Revista Science com contribuição do Dr Gustavo Peixoto   Foto | OMS

Print Friendly, PDF & Email
(Visited 1 times, 1 visits today)