No dia a dia, somos provocados a entender uma mera explicação como causa e estabelecer, sem motivo algum, uma consequência que não se sustenta.

David Hume, em seu livro Tratado da natureza humana, propõe discutir a relação de causalidade ou a relação entre causa e efeito. O filósofo considera que a questão perpassa tanto o âmbito da realidade quanto o âmbito da mente. Sugere que todos os nossos raciocínios seguem uma relação de causa e efeito, ou seja, inferimos a existência de um objeto pela existência de outro, ou de um evento como decorrência de um anterior. Hume entendia das coisas, dos objetos e, sem dúvida, da natureza humana — e sabia mais ainda que nossas inferências são baseadas nas relações que estabelecemos entre as causas e os efeitos.

Não sei se escapou ao filósofo outra questão que daria um segundo tratado, que consistiria em compreender ou indagar por que há, na natureza humana, efeitos rebeldes, ou melhor, efeitos sem causa.

Vamos propor duas situações distintas e provocativas. Na primeira, há um clássico ciclo vicioso que se caracteriza por uma interminável relação em que a causa gera um efeito e este se torna causa que vai se repetir como efeito. Na segunda, há uma mera repetição da causa e do efeito. Ou seja, uma repetição sem relação de casualidade.

Como a questão é clássica, vamos recorrer à crocância de um famoso biscoito que entrou no domínio público como exemplo de ciclo vicioso. Sim, estamos tratando do slogan do Tostines – aquele que “vende mais porque está sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vende mais?”.

A relação de causa e efeito fica bastante clara, não exige inferências complexas. Tostines vende mais (consequência) porque está sempre fresquinho (causa) e porque vende mais (causa) está sempre fresquinho (consequência). A relação torna-se ininterrupta, viciosa.

Imaginemos agora a mesma propaganda elaborada da seguinte forma: “Tostines vende mais porque está sempre fresquinho ou porque está sempre fresquinho vende mais?“. O apressado leitor dirá que há um ciclo vicioso porque a relação continuou a mesma. Engano. No segundo exemplo, há apenas as repetições das mesmas causas e dos mesmos efeitos. Observemos: Tostines vende mais (consequência) porque está sempre fresquinho (causa) ou porque está sempre fresquinho (causa) vende mais (consequência). Mas não é a mesma coisa? Não, não é. A causa continuou causa (porque está sempre fresquinho) e a consequência continuou consequência (vende mais).

Qual o macete deste ciclo? Inverter as relações. O que era causa vira consequência e o que era consequência vira causa.  E assim o mundo gira e a Lusitana roda. Sem afobações, é claro.

No dia a dia, somos surpreendidos por explicações que se disfarçam de causa. Exemplo: “A rua está molhada porque choveu”. Evidentemente que a chuva (causa) levou a rua a ficar molhada (consequência). Mas se a proposição fosse “choveu porque a rua está molhada”? É possível inferir que choveu devido à causa proposta (a rua molhada)? Uma rua molhada provoca chuva?

No dia a dia, somos provocados a entender uma mera explicação como causa e estabelecer, sem motivo algum, uma consequência que não se sustenta. Em tempos de polarização política, basta alguém se opor ao Juiz Sérgio Moro ou questionar os trâmites que levaram o ex-presidente Lula para cadeia para ser tachado como petista. Ou o contrário — fica o convite para criar o enunciado.

Estabelece-se por conta e risco uma relação de causa e efeito que não é sugerida automaticamente — como na canção Te ver, da banda Skank: “É como mergulhar no rio / E não se molhar/ É como não morrer de frio/ No gelo polar”.

Fonte | Revista Educação
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